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Conversando sobre Inteligência Artificial

miércoles, 15 de julio de 2009

Conversando sobre Inteligência Artificial
Entrevista de Luís Moniz Pereira - LMP à jornalista Ana Proença - AP
Dezembro 2000

AP - O que é a Inteligência Artificial?

LMP - É uma disciplina científica muito ligada à Informática, nascendo com a Informática, mas estendendo-se também às Ciências Cognitivas. Portanto à Filosofia, à Linguística, à Neurologia, à Antropologia, e que penso de futuro vai estar cada vez mais ligada a essas áreas e não apenas à Informática. Como disciplina científica visa estudar a inteligência. A inteligência num sentido lato, quer dizer, não só o colher informação como o processar essa informação, "pensar", e como agir em resultado desse processamento. Muitas vezes julga-se que a Inteligência Artificial quer imitar o que o homem faz, mas isso não é verdade. O Homem é uma das maneiras de ser inteligente. Sei lá, os chimpanzés são inteligentes, os seres extraterrestres hão-de ser inteligentes, e portanto o que a Inteligência Artificial quer estudar é as propriedades da inteligência, quer seja no Homem, no extraterrestre, no animal, ou no robô. E portanto não há um desejo de imitar exactamente o que o Homem faz. O Homem tem certas limitações: por exemplo não consegue fazer rapidamente grandes cálculos como um computador faz. Mas faz outras coisas que o computador não faz. Por outro lado, o Homem erra quando pensa e nós, quando fazemos um computador para ser inteligente, não queremos que o computador erre. Logo aí não estamos necessariamente a querer imitar o Homem exactamente no seu uso da inteligência. Também a inteligência é distribuída, quer dizer, a inteligência não está apenas numa pessoa mas está por exemplo num conjunto de pessoas, numa equipa, numa equipa de engenheiros, por exemplo. Portanto a inteligência é uma propriedade distribuída. Também aí não estamos apenas a imitar, ou a querer imitar a inteligência de um homem mas também queremos estudar formas de inteligência, mesmo que ela esteja distribuída por diversos computadores, ou diversos seres ou até uma mistura de computador e Homem, ou de robô e Homem. Aliás não há uma oposição entre Homem e robô, quer dizer, o Homem evolui com os computadores e os computadores evoluem com o Homem. Os computadores estão adaptados ao Homem e o Homem também se adapta aos computadores. E portanto o que há é uma simbiose, afinal de contas, em que justamente não fazia muito sentido imitar o Homem pois se o Homem faz bem aquilo que faz, qual era o interesse de estar a imitá-lo? Interessa é um computador fazer aquilo que complementa o que o Homem faz.

AP - No fundo é potenciar, ou seja, além do que o Homem faz, conseguir fazer mais do que aquilo que o Homem faz.

LMP - Conseguir fazer mais mas pode ser com a ajuda do Homem, quer dizer pode ser uma equipa a dois, Homem e computador, e a equipa é que vai mais longe do que qualquer das duas partes.

AP - Aliás, isso até era uma questão que queria pôr. É que na base de uma máquina inteligente ou que tem inteligência artificial existirá sempre um Homem também inteligente que programou a máquina para isso ou que conseguiu criar essa máquina. Uma coisa está dependente da outra. Certo?

LMP - Exacto. É claro, quando se cria, quando se cria uma criatura digamos assim, nunca se sabe muito bem o que é que ela vai fazer. É o caso do Frankenstein, aquele romance do século passado, da Mary Shelley, que a gente conhece dos filmes. Quando o criador cria uma criatura, por vezes a criatura adquire uma liberdade própria. E também nós não poderemos pensar que o computador está constantemente dependente de nós. Como uma criança, que nos primeiros anos está dependente de nós, mas depois torna-se independente. O que faz com que nós não estejamos constantemente a ter que ajudar a criança. Portanto com os computadores também se pretende dar-lhes as capacidades de forma a eles se tornarem cada vez mais independentes, independentes de nós, não quer dizer que não estejam em colaboração connosco. Não precisam é de uma ajuda constante. Mas também é verdade que o que nós pomos no computador, actualmente, é essencialmente programado na totalidade por seres humanos, e nessa medida as limitações do computador são as nossas limitações. Se o computador não faz isto ou aquilo é porque nós não sabemos dizer-lhe como fazer. Não tanto que por princípio ele esteja limitado à partida.

AP - Mas vocês podem programar o computador de modo a que ele consiga aprender com a experiência?

LMP - Exactamente, sim isso hoje em dia é vulgar. Os computadores aprendem, como aqueles computadores que jogam xadrez. Vão aprendendo, vão-se tornando melhores à medida que jogam.

AP - Aliás, um dos exemplos que quase todas as pessoas falam é do Deep Blue, um computador que joga xadrez. É um exemplo não sei se extremo, mas um exemplo muito utilizado sobre inteligência artificial, não é?

LMP - Sim, é um bom exemplo. Quando a inteligência artificial começou a ser estudada, logo no princípio dos anos 50 - o primeiro computador aparece em 48 - um dos grandes cientistas na origem do computador, o inglês Alan Turing, interessava-se por pôr o computador a jogar xadrez. Ele achava que o xadrez, sendo bastante complicado, no entanto estaria ao alcance dos computadores. Mas demorou-se 30 e tal anos para se conseguir os níveis dos humanos. Houve de facto um esforço continuado de investigação em inteligência artificial nesse domínio, e foi um grande sucesso ter-se atingido esse objectivo.

AP - E parece que já naquele famoso duelo entre o computador e o Kasparov houve uma segunda partida em que de facto o computador ganhou, ganhou ao Homem...

LMP - Sim, o computador ganhou o torneio. Foram várias partidas.

AP - Até o Kasparov disse que achava que não tinha recuperado psicologicamente duma partida que perdeu, e que acabou por ser batido pelo computador no torneio. Ou seja, provou-se de facto que os computadores conseguem ser melhores do que o Homem, até porque não acusam cansaço psicológico, não é?

LMP - Claro. Portanto podem-nos substituir em certo tipo de tarefas. Fala-se hoje em dia muito da exploração espacial, que vai ser sobretudo feita por robôs inteligentes, porque é muito difícil, perigoso, e demora muito tempo, para mandar alguém. Mas também ao fundo do mar. As pessoas talvez não tenham a noção de que o fundo do mar nos é praticamente desconhecido. Hoje em dia sabe-se que há novas formas de vida junto às bocas vulcânicas no fundo do mar, com uma química diferente até. De certa maneira são extraterrestres, no sentido de que não estão na terra, estão no mar. E para ir ao fundo do mar explorar as suas riquezas, e o nosso planeta é cinco sétimos mar, já começam a ser os robôs inteligentes que são enviados para explorar.

AP - Ou seja, são robôs que também a nível da percepção, visão, audição, tacto, têm todas as capacidades de um humano.

LMP - Têm que ter todos esses órgãos sensoriais senão não conseguiam...

AP - E é possível recriar a 100% todas essas capacidades sensoriais humanas, a nível de tacto, visão, olfacto...

LMP - Claro, as capacidades sensoriais são orientadas para o meio especial em que vai actuar....mas há todas essas modalidades sensoriais de facto.

AP - ... e que conseguem a 100%, ou melhor ainda, representar o equivalente à percepção à humana?

LMP - Eu talvez não pusesse a questão assim, porque quando se manda um robô para o fundo do mar não se está a pretender imitar os órgãos sensoriais humanos, porquanto os requisitos são diferentes. Mas existem robôs, que não estão no fundo do mar, que têm capacidades sensoriais nalguns casos superiores à humana, embora no caso da visão, que é muito difícil, isso não suceda. Mas há um progresso constante. Inclusivamente hoje em dia há próteses que permitem a cegos ver. Por intermédio de uma prótese informática, que consiste numa "chip" colocada no crânio com eléctrodos penetrando no cérebro, e a que se liga uma câmara, para que os cegos comecem a entender as imagens fornecidas pela câmara.

AP - Isso já é utilizado?

LMP - Sim. Já está numa fase experimental, já há cegos a fazer essa aprendizagem. Prevejo que no futuro tais simbioses se tornem cada vez mais importantes. No fundo é semelhante àquilo que, nos anos 50, se chamava a Biónica, que era aproveitar a inspiração biológica para resolver problemas técnicos. Na altura, uma das coisas que teve um grande sucesso foi revestir os submarinos com uma pele semelhante à dos golfinhos, para deslizarem muito melhor dentro de água. Agora está a suceder um pouco ao contrário, quer dizer, nós vamos buscar às máquinas, neste caso aos computadores, complementos para o nosso corpo biológico. Se nos virmos como modelo, digamos assim, e criarmos uma criatura à nossa imagem e semelhança, num segundo passo estamos a modificar a nossa imagem com elementos da criatura que criámos. Portanto não somos uns deuses distantes, somos uns deuses que evoluímos com as nossas criaturas.

AP - Isso coloca a questão que as pessoas muitas vezes põem, se não é perigoso estar a autonomizar, se não se pode virar contra nós, se não pode ser uma ameaça à própria espécie humana.

LMP - Tudo é perigoso, o universo é uma coisa complicada. É perigoso, mas a ciência, o conhecimento, é que permite lidar com os perigos, e portanto do que nós precisamos não é propriamente de fechar os olhos, mas sabermos o que estamos a fazer, e, se fizermos erros, de sabermos corrigi-los. Mas também não se deve ver o computador como antagónico, e por isso é que eu insisto na imagem de simbiose entre o Homem e o computador. Quer dizer, não estamos a criar um ser que se autonomiza e que se queira revoltar contra nós...

AP - ... é muito essa ideia que é promovida pelas ficções científicas...

LMP - Isso tem muito a ver com a mitologia. O Homem revoltou-se contra Deus. O Homem em termos mitológicos desobedeceu, foi expulso do paraíso, e portanto nós temos uma essa ideia de revolta. Mas o Homem e o computador estão em evolução conjunta. O Homem evolui com os seus instrumentos. O que somos hoje só podemos sê-lo porque inventámos o fogo, porque inventámos as armas, porque inventámos as vacinas, a agricultura, tudo isso. O computador não é mais do que uma continuação natural dessa evolução Tem a novidade de que pela primeira vez estamos a automatizar a inteligência, embora no séc. XVII, século de Pascal e de Leibniz, houvesse máquinas para somar e subtrair, calculadoras, que já estavam a automatizar o pensamento.

AP - Que critérios existem para se dizer que esta máquina tem inteligência artificial, até porque uma simples calculadora faz uma conta que nós fazemos? Como se distingue uma máquina que não se pode considerar de inteligência total de outra?

LMP - A inteligência não é uma essência. Não se pode dizer que uma coisa tem inteligência como se dissesse que tem carbono. "Inteligência" é uma propriedade funcional, tem a ver com o modo como as coisas estão organizadas e é também, parte de um vocabulário. Quando usamos o vocabulário relativo à inteligência, usamos o chamado vocabulário intencional. Por exemplo, temos um termostato que regula a temperatura na sala. Será que é inteligente? Quando a temperatura está mais baixa ele liga, quando a temperatura está mais alta ele desliga, e portanto para aquele fim é altamente inteligente e faz exactamente o que se pretendia dele. Ele tem um objectivo, tem a intenção de manter a temperatura da sala. É este o tipo de vocabulário, ter a intenção, alcançar o objectivo...

AP - Mas ele não tem consciência...

LMP - ...é um tipo de vocabulário que é cómodo para descrever seres humanos ou programas de computador que possam ter comportamentos intencionais, que se percebe que têm uma intenção por detrás. Um computador é capaz de controlar um comboio, uma locomotiva, controlar uma central eléctrica, perceber que há desvios, saber quais as acções a tomar, e escolher entre as melhores acções. É cómodo usarmos o vocabulário da inteligência para descrever coisas complicadas. Certos vírus são altamente inteligentes. Tentam atacar a célula, a célula defende-se mas o vírus aprende a contra-atacar e a prevenir-se. O vírus da SIDA, por exemplo, parece ser altamente inteligente. Por mais que tentemos apanhá-lo, ele faz mutações e passa a ter outro comportamento. Os vírus são espécies que evoluíram ao longo de milhões de anos, foram acumulando uma inteligência nos seus próprios genes, embora não se possam reproduzir e precisem de nós para o fazer. Os computadores também não se reproduzem. Actualmente não se reproduzem sozinhos, de certa maneira são parecidos aos vírus, precisam de nós para se reproduzirem. Também há vírus benéficos, nós vivemos com eles em simbiose no nosso corpo. Os computadores, ao serem úteis para nós, estão a encomendar-se junto a nós para os mantermos e reproduzirmos.

AP - Mas voltando ao exemplo do termostato. Poderá ser inteligente na medida em que tem uma intenção e que cumpre essa função, mas não consegue aprender que há uma altura do ano em que está sempre mais frio, e que há outra altura do ano em que está sempre mais calor.

LMP - Hoje em dia as máquinas aprendem vulgarmente, e há sistemas de aquecimento que aprendem. Podemos ter de facto um sistema que no clima de um certo país, por exemplo aqui em Lisboa, aprende ao longo da experiência como é que os dias em Lisboa progridem, quando é que deixa de haver luz, e portanto perceber no mínimo coisas tão simples como "às x horas, nesta altura do ano há y horas de luz, e portanto, antes de desaparecer o sol o aquecimento liga sem nós termos que estar a programar". Nós só temos de dizer "antes de desaparecer o sol comece a trabalhar que é para estar quente quando eu chegar a casa". Não lhe temos que dizer que o sol desaparece às tantas horas, e pronto ficou logo programado para o ano inteiro. E existem sistemas desses que aprendem depois a conciliar: pode ser um dia de sol mas que também tem vento gelado, ou não tem vento gelado, depende do vento que haja, depende se há nuvens ou não há nuvens, depende da humidade. Há sistemas que conciliam toda essa informação sensorial e tomam uma decisão sobre como regular o clima de uma casa ou de todo o edifício - são os chamados "edifícios inteligentes".

AP - Mas por exemplo, pode-se dizer que esse sistema é inteligente e que o termostato que apenas desliga e liga consoante a temperatura estiver, não é inteligente. O primeiro é inteligente e o segundo não é, ou são ambos ?

LMP - Repare, é uma questão de grau...

AP - ... e de complexidade...

LMP - ... e de complexidade. Eu diria que o termostato tem uma inteligência mínima porque se adapta; usando a adaptação como critério de inteligência. Há inteligências do tipo 1, do tipo 2, do tipo 3. Quando se começa a analisar o que é que é a inteligência começa-se a perceber que há diversas variedades, que vão desde inteligências elementares a inteligências mais complexas.

AP - E talvez se calhar o senso comum interprete mais como inteligência artificial quando já o nível de complexidade já é bastante elevado e muitas vezes ultrapassa as nossas próprias capacidades, não é? Porque hoje em dia ninguém chama a um termostato inteligente...

LMP - Olhe já se fala em edifícios inteligentes...

AP - Pois, agora está muito na moda...

LMP - ... carros inteligentes...

AP - ... carros inteligentes. Quer dizer, as palavras e o seu uso evoluiem.

LMP - ... roupa inclusive, agora lembrei-me.

AP - Também já há?

LMP - Está-se a planear roupa que se adapta ao clima. O dia pode mudar de repente, a pessoa já não terá aquele incómodo de ter de tirar o casaco...

AP - Começa o ar condicionado a funcionar...

LMP - Até muito recentemente, a inteligência, para além de existir em certos mamíferos, só existia no Homem, e portanto nós tínhamos a tendência de equacionar a inteligência com a nossa inteligência. Mas há outras formas de inteligência, e há outros graus de inteligência. Com o aparecimento do computador e o processamento de informação isso começou a tornar-se óbvio, começou a entrar na nossa linguagem...

AP - No caso limite, a inteligência do computador hoje permite-lhe fazer, como o Homem faz, uma síntese criativa? Pode ele equacionar um dado novo por si próprio, ter uma síntese criativa? Isso é que é capaz de ser mais difícil.

LMP - Sim. Justamente pode aprender conceitos, e pode aprender novos conceitos. Pode perceber que sempre que se verifica A também se verifica B e logo a seguir verifica-se C, e portanto ele percebe que A e B ocorrem de maneira ligada e por vezes dão origem a C.

AP - Uma outra coisa que eu tinha para lhe perguntar. Quando se fala em história da inteligência artificial fala-se de Alan Turing. Qual foi o grande contributo que ele deu para o aparecimento e para a investigação em inteligência artificial? Dá-me ideia que é uma pessoa realmente importante.

LMP - É, é muito, muito importante, embora o seu trabalho seja um bocadinho técnico para o público em geral. O Alan Turing foi um matemático inglês que, essencialmente, demonstrou que os computadores podiam fazer tudo o que nós conseguíssemos especificar. Tudo o que consigamos definir de uma maneira bem definida -- porque temos que saber o que pretendemos de facto que o computador faça -- então existe um computador que o faz. E por outro lado provou que qualquer computador tem essa capacidade. É por isso que nós não temos que ter um computador para fazer processamento de texto e ter um computador separado para fazer contas Excel, não é? O computador é completamente versátil. Tudo o que um computador pode fazer o outro também pode. Qualquer computador pode vir a executar qualquer programa. Este resultado é extremamente importante porque dá generalidade ao computador. Os computadores são todos iguais, é claro. Podem ter mais ou menos memória, ser mais ou menos rápidos, mas não há nenhuma limitação de princípio tal que um possa fazer uma coisa que o outro não faz. Todos eles podem executar qualquer algoritmo, podem correr qualquer programa. Não há um programa que a gente imagine que o computador não corra. Portanto, as limitações do computador são, pode-se dizer, as nossas limitações em fazer os programas para ele. Foi isto que o Alan Turing provou, em 1934, matematicamente. Para além de ter realizado o primeiro computador, quer dizer, desenhou e participou na construção do primeiro computador. Foi realmente o resultado de base, que é no fundo sobre o que é possível fazer com os computadores, que deu o grande impulso: se os computadores conseguem fazer isso tudo então vamos de facto construí-los porque vai ser uma coisa muito útil.

AP - E fala-se muito também do teste do Turing, no qual...

LMP - Turing preocupou-se muito com a inteligência artificial, sendo o seu fundador. Eu já vos referi os trabalhos dele sobre xadrez jogado por um computador. Ele também foi importante por outras razões. Ajudou e muito a ganhar a 2ª Guerra Mundial, porque fez um computador, o "Bombe", que decifrava diariamente o código dos submarinos alemães. Este era mudado e decifrado todos os dias pelos alemães, com uma máquina chamada Enigma, que os submarinos traziam consigo. O código era usado para dar instruções aos submarinos alemães sobre o posicionamento dos comboios de barcos que vinham dos Estados Unidos para apoiar a Inglaterra. Sem esse apoio os Aliados teriam, diz-se, perdido a guerra. E como os alemães mudavam o código todos os dias, para o decifrar a tempo era preciso ter uma máquina para tal, suficientemente rápida. Turing fez um computador especializado que decifrava o código, com informações inicialmente obtidas por espiões polacos, e a partir daí os Aliados sabiam exactamente onde é que iam estar os submarinos alemães. Mais tarde fez um computador, o "Colossus", com que decifrava outros códigos Nazis.

AP - Uma história interessante...

LMP - Infelizmente é preciso guerras para muitas vezes a ciência se desenvolver. Porque a ciência tem imensas possibilidades, só que às vezes é preciso vir a guerra para se lhe darem os recursos, quando afinal em tempo de paz também se podiam pôr mais recursos na ciência e beneficiarmos todos disso...

AP - E depois, ao nível da inteligência artificial, Turing...

LMP - Turing, como estava interessado nisso, pergunta "Quando é que eu vou poder dizer que o computador é inteligente?", aquilo que você me estava a perguntar. Ele ficou famoso por ter proposto o agora chamado "Teste de Turing", que consiste em aferir que o computador será tão inteligente quanto nós quando não soubermos se estamos a falar com um computador ou com uma pessoa. Portanto Turing imagina uma situação em que há um ser humano que está a conversar, não sabendo se com um computador se com uma pessoa, que estão noutro lugar. A conversa processa-se através de um terminal, e o teste consiste em o ser humano adivinhar, ao fim de 5 minutos, se "sim" ou "não", se está a falar com uma máquina ou com uma pessoa. Na prática, faz-se a experiência com vários humanos várias vezes, e quando em média confundirem a identidade do seu interlocutor com uma probabilidade superior a, por exemplo 80%, diz-se que o computador é inteligente.

AP - Mas esse teste já acontece?

LMP - Todos os anos há uma competição mundial de programas de computador que são sujeitos ao teste. Os testes actualmente são sobre domínios de conversação pré-definidos, quer dizer não é um teste sobre qualquer assunto, mas são bastante latos. E de facto há programas que conseguem enganar, passe a expressão, ou melhor não são detectados se são programas de computador ou se seres humanos que estão, digamos, do lado de lá do fio. Seria interessante averiguar se ganhavam os concursos da RTP1 e da SIC...

AP - Ou seja, esse teste ainda é válido nos dias de hoje para bem definir e dar resposta àquela pergunta de quando um computador é inteligente.

LMP - Exacto. Ainda ninguém inventou um outro teste melhor.

AP - Isso faz-me pensar na questão da tradução de línguas. Existe já alguma máquina ou computador que consiga traduzir de acordo com um determinado contexto linguístico, com todas as implicações que tenha uma língua?

LMP - Existe, e é usado vulgarmente pelos tradutores profissionais. É um sistema em aperfeiçoamento, e portanto não totalmente correcto, mas o que faz é uma primeira tradução, e o tradutor profissional depois pega nela revê e corrige. Está provado que aumenta a produtividade do tradutor profissional em cerca de 25%.

AP - Mas em Portugal temos muitas expressões que não são nossas, por exemplo do Inglês temos o "piece of cake" que é "uma coisa muito fácil". Todas essas expressões teriam que ser introduzidas no computador para ele não confundir o sentido literal com o sentido conotativo, não?

LMP - Claro.

AP - O Altavista tem tradução, e aquilo é um caos completo...

LMP - Mas o Altavista é um sistema simples, que não é muito diferente da tradução palavra a palavra.

AP - Aquilo é quase ridículo, não serve rigorosamente para nada porque ainda se fica mais confuso. É melhor ler na língua original.

LMP - Mas por exemplo a União Europeia tem sistemas muito mais sofisticados. O sistema SYSTRAN é usado diariamente pelos burocratas da União Europeia, dada a quantidade de línguas que há na Europa, a quantidade de documentos que é preciso traduzir. Durante anos desenvolveram-se esses sistemas, e continua-se a fazê-lo.

AP - Pode fazer uma referência a uma evolução geral? Como é que evoluiu a inteligência artificial a nível de investigação desde os anos 40 ou 50?

LMP - Princípio dos anos 50. Aliás, salvo erro esse artigo do Turing, em que fala no teste, é mesmo de 1950 ou 51. É uma história fascinante, cheia de ricos pormenores. É toda uma telenovela, digamos assim...

AP - Mas de certeza que os programas e os sistemas que foram sendo criados, ao princípio só se aplicavam a uma determinada área, e aos poucos foram-se alargando a várias áreas, desde a medicina, à...

LMP - O problema básico da Inteligência Artificial é o da generalidade. Há quem lhe chame Inteligência Geral, porque justamente o que pretendemos é desenvolver métodos genéricos, independentes do domínio. Suponhamos o caso da medicina: há programas para fazer diagnósticos. Posso dizer que no Hospital da Universidade de Pittsburgh é usado diariamente, desde há vários anos, um sistema chamado TRAUM-AID (cf. http://www.cis.upenn.edu/~traumaid/). É um sistema que faz diagnóstico sobre doentes que chegam à Emergência traumatizados, porque caíram ou porque tiveram um desastre de automóvel, ou porque foram esfaqueados, e o problema é o de ter de se tomar uma decisão muito rápida sobre o que se vai fazer, se vai para a sala de operações, se vai fazer este teste, aquele, ou qual. Foi provado, ao longo de muitos testes, que esse programa toma melhores decisões do que os médicos, e portanto os médicos usam simplesmente o programa, o que põe problemas éticos. Fala-se tanto na ética ligada à modificação genética, mas fala-se muito pouco de questões éticas deste tipo: se se usa ou não um programa para tomar uma decisão médica. E este caso das emergências é típico, porque em casos em que não há urgência o médico tem mais tempo. Mas quando é preciso actuar logo, quando é uma questão de vida ou de morte, e se tem um computador que decide melhor e mais depressa, vamos pelo computador ou vamos pelo médico?

AP - O problema aí é o do erro, também, não é?

LMP - Pois. Em caso de erro, a quem se imputa a culpa, quem é acusado de negligência? Os autores do programa de computador, ou o médico que o usou? Esse é todo um tema que tem sido pouco discutido.

AP - E já há hospitais em Portugal que funcionam assim?

LMP - Em Portugal, que eu saiba não. Neste momento estou a trabalhar num programa para diagnóstico de doenças mentais com uma firma americana, que não é para substituir o médico, é para fazer com que o médico tenha uma actividade mais rentável. O computador dá-lhe estas e aquelas possibilidades de diagnóstico, o médico pode pôr mais umas questões, ou fica a saber que tem de perceber se é esta ou aquela doença, e então examina o doente nesse sentido. E visa-se que o programa também venha a ser usado por exemplo em países do terceiro mundo onde não haja médicos, ou se calhar só haja um enfermeiro ou às vezes nem isso, e então será melhor ter lá um programa que faz diagnóstico psiquiátrico prévio, para poder despistar doenças ou encaminhar os doentes.

AP - Mas é tipo, fazem um teste à pessoa e depois o computador analisa, como é que é?

LMP - Introduzem-se os sintomas, ou o programa pergunta quais são, se há este sintoma, se há aquele, desde há quanto tempo, etc.

AP - Mas isso levanta imensos problemas éticos... Pode-se colocar um rótulo a uma pessoa, uma classificação, que às vezes pode não mais passar. Quer dizer o nosso cérebro é uma coisa por demais complicada, pode ter-se dado um "click" e aparecerem esses sintomas...

LMP - Muitas vezes o uso desses programas é para despistar doenças e encaminhar os doentes. Chega um doente, para onde é que ele vai ser orientado? Acha-se mesmo que ele tem um problema psiquiátrico ou não tem? Se tem é deste tipo ou daquele? É uma coisa que pode esperar ou é uma coisa urgente? Quer dizer, não é o programa que vai fazer o tratamento do doente, mas é para ajudar a encaminhar os casos. Por vezes na circunstância não há alternativa melhor: mais vale isso do que simplesmente não fazer nada.

AP - Ou seja, a nível ético, quer neste caso quer no outro que falava das urgências, concorda que seja utilizado este tipo de sistemas, que é uma forma de aumentar a eficácia do centro hospitalar?

LMP - Claro. Concordo perfeitamente.

AP - Ou seja, para si pessoalmente a questão ética acaba por não ter...

LMP - As questões éticas, no fundo, porque é que são difíceis? Porque são um jogo entre objectivos que colidem. No caso do aborto, há objectivos que colidem. Há o desejo da mãe, depois há o objectivo de não acabar com a vida. Portanto o problema ético é sempre um conflito de se desejar várias coisas ao mesmo tempo que não são possíveis ao mesmo tempo. E portanto a solução é a de encontrar o justo equilíbrio. Este depende muito das circunstâncias. Mas isso agora levava-nos aqui a uma conversa sobre...

AP - Pois, é melhor não entrarmos por aí. Se puder identificar áreas de investigação, e naturalmente de aplicação, da inteligência artificial à medicina, à indústria, ...

LMP - A resposta pode parecer altaneira mas são todas as áreas. Porque na verdade a nossa civilização tem atingido uma complexidade muito grande, cada vez mais aceleradamente, e nós próprios temos já dificuldades em lidar com a sua complexidade. Até porque os nossos cérebros são essencialmente de homens do Paleolítico, e enquanto os computadores ainda podem evoluir, nós temos grandes dificuldade em fazê-lo, embora o nosso cérebro tenha as tais características de versatilidade e de adaptabilidade, a dita inteligência geral, que é a capacidade fundamental que o computador precisa de ter, e que pode vir a ser usada quer no diagnóstico médico, quer noutras áreas.

AP - Numa perspectiva larga, quais os traços gerais para o próximo século ao nível da inteligência artificial? Que previsões se podem traçar para os próximos 100 anos?

LMP - Esse tipo de especulação é sempre muito subjectiva. Não sou um cientista que promete o que virá, mas apenas pretendo dar pistas para que as pessoas elas próprias pensem sobre o assunto, já que as decisões de investimento podem ser colectivas. Já falámos numa espécie de biónica ao contrário, em que os homens vão evoluir no sentido de incorporar próteses informáticas, próteses com inteligência artificial. Aliás hoje em dia já se começa a pensar introduzir células jovens no cérebro de pessoas com Alzheimer e outras deficiências, e o casamento da biologia molecular com a inteligência artificial vai ser inevitável, porque na verdade o que a biologia molecular e a genética fazem são na verdade computações. Quer dizer, o que o ADN faz são computações. Embora o substracto sejam moléculas, aquilo são computações: há códigos, há instruções, há instruções para corrigir erros quando eles ocorrem. Portanto, por um lado a biologia será vista cada vez mais numa perspectiva das computações que estão a decorrer, por outro, o substracto biológico será cada vez usado mais para fabricar os próprios computadores. Além disso, já há actualmente métodos e algoritmos de computação inspirados na genética: chamam-se Computação Genética e Programação Genética.

AP - E "chips" orgânicos...

LMP - "Chips" orgânicos virão certamente. Também o modelo genético da computação é usado para a criatividade dos computadores. Porque é que os seres vivos têm criatividade? Porque combinam genes. Quando dois grupos de genes se combinam para dar um filho ele é uma combinação criativa. E na computação nós usamos vulgarmente esse método, que consiste em misturar genes de programas e de parâmetros de programas. Certos genes fazem com que um programa se comporte duma certa maneira, outros genes de outra, e misturamos genes de versões diferentes de um programa para ver se a combinação não dará um programa melhor. Se der, juntamos esse ao "pool" genético de programas, e começamos a cruzar os programas com os melhores genes. Se não der, deita-se fora, morre como numa evolução. Chama-se a isso Programação Genética, e existe na Informática há 20 anos, tal como a Computação Genética, que é um método de optimização. Esta última é uma técnica de programação vulgar hoje em dia, e foi inspirada em mecanismos biológicos de evolução. Quanto mais olharmos para os mecanismos biológicos como computação, maior inspiração traremos também para os computadores.

AP - A nível do dia a dia do cidadão e do espaço doméstico, qual o cenário futuro mais provável?

LMP - Vamos ao cenário doméstico. Bom, hoje em dia ele é cada vez menos doméstico. Muita gente tem um computador em casa, está ligado à Internet e, digamos, em pleno cenário doméstico estamos ligados a todo o mundo. Mas eu percebo a sua pergunta. Provavelmente os electrodomésticos vão estar ligados entre si e ligados à web, ligados aos telemóveis. Hoje em dia, nas grandes feiras informáticas, por exemplo a CeBit, já começam a aparecer electrodomésticos com capacidades de trocar informação, e já existem standards de comunicação e linguagens convencionadas para isso acontecer. Vamos portanto caminhar para situações em que o frigorífico sabe o que tem dentro, se tem lá os filetes, se ainda há bifes, se falta o leite, etc. E quando faltar faz a encomenda pela Internet ao supermercado. E nós podemos telefonar para casa e interrogar o frigorífico...

AP - Olha, "Há peixe para o jantar?"...

LMP - "Sim senhor!" "Então põe a descongelar..." O frigorífico até poderá mandar depois para o forno, que é previamente ligado. Vai haver uma maior interligação dos electrodomésticos duma casa.

AP - Li recentemente uma notícia de um aspirador que funcionaria sozinho, sem ninguém ter que estar ali... LMP- Isso é muito mais difícil por causa do problema da visão dos obstáculos, e da locomoção. O que provavelmente ocorrerá é que certas zonas da casa terão que se adaptar para que possam existir esses tipos de robôs. No chão é difícil mas talvez possam andar no tecto. O tecto está relativamente livre, e talvez possa haver uns carris no tecto, e o robô possa descer dependurado do tecto. É mais fácil evitar obstáculos, a locomoção já tem os caminhos pré-definidos, e talvez possa fazer aspirações e verificar se está tudo bem arrumado. De um ponto de vista de informática no lar os diversos electrodomésticos vão estar cada vez mais ligados num todo, e nós poderemos comunicar com eles e deixar-lhes mensagens à distância. Uma área doméstica que vai aparecer em breve, para além do comércio electrónico que hoje em dia já existe, em que a pessoa tem as suas listas de compras no computador, encomenda e vão levar a casa, é a área do entretenimento. Actualmente temos 50-60 canais de TV Cabo, mas viremos a ter centenas de canais e poderemos além disso fazer "download" de vídeos em arquivo que desejamos ver. Não teremos que ver apenas o que está a ser transmitido na altura: a televisão torna-se interactiva e poderemos encomendar no próprio momento, especificamente para nós, aquele filme que desejávamos ver. Portanto o número de possibilidades de programa vai a crescer, e nós já não teremos tempo nem paciência para procurar e escolher. Toda a gente tem essa experiência, de chegar a casa e ter que ver as várias páginas de jornal mais a revista da TV Cabo para saber o que vai dar. Ora, neste momento até tenho um projecto de investigação a ser preparado no sentido de produzir um programa de inteligência artificial que nos ajuda a escolher programação. Ele permite-nos explicitar do que gostamos. Dizer, por exemplo, gosto muito de filmes, mas não gosto de filmes a preto e branco, a não ser que sejam os filmes do Bogart, aí já gosto, mas mesmo assim só daqueles depois de 1935. Posso informar o computador destes meus gostos. Quem diz filmes diz documentários, do tipo tal ou do tipo tal. Se estiver a pensar viajar para um certo país, estarei muito interessado se aparecer um documentário sobre esse país, e quero vê-lo. Ou então porque os meus filhos estão a estudar um certo tópico para um trabalho escolar. Nós diremos ao nosso computador, que estará ligado à televisão, as nossas preferências e as nossas regras, mas vamos poder mudar as regras ao longo do tempo. E se estão várias pessoas numa sala, o programa poderá conciliar as preferências de uns e de outros. Também é óbvio que se dissermos gostar de futebol o computador não deverá dar-nos futebol 24 horas por dia. Terá que saber dosear. E ainda perceber que se gosto de um programa dum tipo provavelmente também gosto de um programa daquele outro tipo. Como saberá? Porque houve pessoas com gostos e escolhas semelhantes aos meus, e que fizeram escolhas de programas que eu nunca vi mas que, por analogia, poderei gostar. Então o programa propõe-nos uma oferta. Isso permitirá conciliar a rotina com a variedade e novidade. É uma coisa que vai surgir de certeza. Aliás a companhia americana TiVo já está a dar passos nesse sentido (ver em http://www.tivo.com/ ).

AP - Provavelmente esse género de sistemas, tal como os electrodomésticos de que falava há pouco, aparecerão inicialmente a custos muito elevados e que progressivamente irão baixando e tornando-se acessíveis a um maior número de pessoas. Outro aspecto que eu achava interessante seriam aplicações a nível da Internet.

LMP - Nós temos a Internet, e cada vez mais muito da nossa vida vai passar por canais que acedem às coisas que nos interessam mas que estão dispersas. Vamos precisar de agentes artificiais aos quais comunicamos os nossos interesses, aquilo de que estamos à procura. Aliás existem já alguns, simples, que vão à procura pela Web de coisas que nos interessam, e depois alertam-nos mandando mensagens a dizer o que encontraram. Tal como para os programas que nos ajudarão a escolher programas de televisão, também daremos instruções a esses agentes na forma de regras a seguir.

AP - Podemos ter regras específicas nossas, não é?

LMP - Sim. Um agente artificial será o nosso intermediário com a Web, tal como podemos indicar a um agente de viagens o tipo de viagem que procuramos, e ele nos encontra propostas. Mas o nosso agente artificial para a Web vai ter poder de negociação. Por exemplo, podemos estar interessados em quadros de um certo período. Poderão estar à venda na Web tais quadros, e nós, que não podemos estar atentos a tudo o que se passa por esse mundo fora, teremos esse agente a quem dizemos que quadros deste período negoceie, comece a negociar entre tanto e tanto. Ele terá uma margem de liberdade para negociar, fora disso consulta-nos. Esses agentes vão precisar de inteligência, está-se mesmo a ver. E poderão ir mais longe, fazendo contratos em nosso nome. Tal como temos advogados para realizar contratos, haverá agentes que fazem esses negócios e esses contratos por nós.

AP - Para fazer uma síntese, segundo a sua opinião, não teremos uma perspectiva futura pessimista de oposição entre máquina e o homem, e uma possível revolta da máquina, mas sim uma perspectiva de simbiose e de evolução conjunta da máquina e do homem, e de uma interacção e interajuda para a vida e para as tarefas diárias.

LMP - É isso que eu considero uma evolução natural, numa sociedade democrática. Porque essa não é uma questão científica, é um problema político. Nós vamos usar os computadores ou vamos fazer robôs para substituir soldados no terreno? Já vimos como está a evoluir a guerra inteligente, com os mísseis e tanques inteligentes. Hoje em dia pesquisam-se tanques que actuam no terreno, comunicam entre si, actuam como se fosse uma equipa conjunta. Não está lá nenhum ser humano dentro, e são capazes de tomar decisões no local. Caminha-se para aí, não é? Caminha-se para a automatização da guerra. Mas os foguetões desenvolvidos para a guerra fria põem agora satélites em órbita que permitem todas estas comunicações entre computadores. Quer dizer o uso que damos à tecnologia não está pré-determinado. O que a ciência faz é gerar uma série de possibilidades. Depois, quais as possibilidades que são aproveitadas e o uso que se faz da tecnologia normalmente escapa ao cientista. Quando este faz estudos dos genes que permitem corrigir doenças genéticas isso poderá ser usado para modificar as pessoas, para as transformar em robôs. Portanto as pessoas em geral devem estar a par do avanço da ciência para se aperceberem destas opções. Não só porque os avanços da ciência são fascinantes em si, muito mais interessantes que qualquer telenovela, mas porque têm que estar informados para em conjunto exercerem a pressão e os seus direitos políticos no sentido da sociedade evoluir para aqui ou para ali. Numa sociedade em que o que mais conta é a ganância e o lucro, é óbvio que as coisas vão correr mal.

AP - E inclusivamente numa sociedade globalizada... LMP- Envolve a discussão do como se aplica o dinheiro em ciência. Politicamente, quando há dinheiro ele vai para a Saúde ou para tanques de guerra mais sofisticados? Vai para armas biológicas letais, ou vai para outro fim mais desejável, como para conseguir que os cegos possam começar a ver com a ajuda do computador? Essa discussão tem passado muito ao lado do interesse das pessoas. Os jornais trazem muito pouco sobre ciência, fala-se pouco sobre isso, programas de televisão específicos há poucos, debates na televisão muito menos. Há mil debates sobre o pontapé que um futebolista deu numa bola, mas questões importantes para todos nós acerca da ciência não se debatem. Temos que começar por aí, por vocês jornalistas, que têm um papel muito importante em trazer a debate estas questões.

AP - Já estamos a alongar a nossa conversa, mas só mais três coisas. Primeiro, o futuro está a passar por uma maior relação com a máquina, o que faz com que muitas vezes o homem deixe de trabalhar com um colega e trabalhe só com o computador. O facto de se porem emoções no computador é para evitar que o homem caia um bocado na solidão, é em parte para colmatar esse vazio criado pela ligação intensa entre homem e máquina, ou existem outras razões? Tem sentido não deixar o homem cair na solidão fazendo com que o computador consiga estabelecer um diálogo simpático com o homem?

LMP - Penso que não há ninguém que proponha realisticamente que substituamos as relações com os seres humanos por relações com o computador, mas o perigo existe de na verdade isso se tornar num sucedâneo. Li recentemente um livro sobre isso, "The De-Voicing of Society" de John L. Locke, em como as pessoas já não falam umas com as outras, já não têm tempo para falar, estão sempre a fazer "zapping", já perderam o vocabulário, são seres passivos em que só lhes entra informação, e não são capazes de produzi-la articuladamente. O relacionamento humano está a ficar muito mais pobre, e ainda por cima as pessoas querem relacionar-se com outros que estão à distância, através da Web, porque os mais próximos dos seus interesses imediatos estão é acessíveis via a Web, e voltam as costas aos que estão mais próximos fisicamente, em favor daqueles que estão mais próximos, digamos, intelectualmente. Mas isso não tem a ver propriamente com a reacção emocional do computador. No sentido que eu o vejo, esse é mais um problema de comunicação, o de o computador não estar apenas atento ao que escrevemos no teclado, mas tenha uma câmara que perceba também o nosso estado de espírito, e possa reagir em conformidade com ele. Sei lá, o computador poder-me-ia dizer: "Luís, já estás a fazer muitos erros pá, não seria melhor ires agora para casa? Deixa isso para amanhã, estás com um ar cansado, já ontem trabalhaste 10 horas e tal..."

AP - Isso acaba por ser útil, e acaba por ter uma função. Se não existe outra pessoa ao lado que consiga identificar esses sintomas e consiga fazer esse comentário, se calhar, se partir da máquina é melhor do que não partir de ninguém.

LMP - Exacto.

AP - Só mais uma pergunta mesmo, a nível de investigação em IA em Portugal, como é que estamos? Muito atrasados em relação aos restantes países?

LMP - Em Portugal, em certas áreas, estamos na verdade na crista da onda da inteligência artificial. Acho eu.

AP - Em que áreas, especificamente?

LMP - Não sendo suficientemente humilde, na zona em que trabalhamos eu e a minha equipa, e que verdadeiramente conheço, é uma área em que somos reconhecidos mundialmente.

AP - E é qual?

LMP - É a zona de Representação de Conhecimento e Raciocínio.

AP - Mas a ideia que me dá essa designação é que acaba por ser tudo um encadeamento de regras, tipo "se...então", de construções lógicas. E o computador trabalha em função de um determinado número de implicações lógicas, e só a partir daí é que consegue ser inteligente, não é?

LMP - Exactamente. Ele precisa dessas funções lógicas de maneira bastante assídua, mas também essas funções lógicas não estão fixas, não se pode dizer que há estas e tais maneiras de raciocinar hoje em dia, e que daqui a uns anos não há outras maneiras de raciocinar. Bem pelo contrário. Os métodos de raciocinar têm evoluído e os próprios computadores ao obrigarem-nos a pensar sobre isso -- e eu trabalho nessa área dos métodos de raciocínio -- fazem com que percebamos que afinal os podemos melhorar, e até inventar novos métodos de raciocínio. Por exemplo, a demonstração por absurdo é uma coisa que as pessoas aprendem na escola, nomeadamente que se uma hipótese conduz a uma contradição então é porque a hipótese era falsa. O método de redução ao absurdo foi inventado pelos Gregos. A dada altura não existia, mas depois de inventado e aceite passou a raciocinar-se também assim, passou-se a ensinar nas escolas e vulgarizou-se. Como esse há vários outros métodos de raciocínio que têm sido inventados recentemente, por virtude da própria necessidade de ensinar o computador a raciocinar. E alguns desses métodos irão emigrar para as escolas, irão mesmo. Portanto o raciocínio, a capacidade de pensar, é uma coisa que está sempre em aberto, nada nos impedindo de pensar de outra maneira. Mas também os métodos de raciocínio não chegam, porque o computador não está a raciocinar, digamos, num aquário, numa cúpula; o robô tem que estar inserido num mundo, tem que ter órgãos sensoriais, tem que ter uma capacidade de acção, tem que saber observar as consequências da sua acção, tem que ter um corpo, em resumo, não pode ser simplesmente um espírito desenraizado. E, justamente, uma coisa são as diversas componentes do que é necessário para ter inteligência artificial no seu aspecto de análise, e depois tem o outro aspecto que você há bocadinho referiu que é o de síntese, em que é preciso agarrar nestas partes todas e fazê-las funcionar em conjunto. Fazê-las funcionar com o braço mecânico e com a lente de televisão, com as rodinhas, e tudo o mais que for necessário. Porque a inteligência artificial também tem um aspecto de engenharia, e na verdade visa construir algo artificial. A dada altura é preciso agarrar nas peças e pô-las todas juntas, e isso não é nada fácil.

AP - Mas é possível programar uma máquina ou fazer um sistema com capacidade criativa? Ou seja que junta a experiência que tem e a partir daí elabora, tal como nós o fazemos?

LMP - Nós não sabemos bem em que consiste a nossa capacidade criativa, portanto também não sabemos muito bem ensiná-la ao computador. O querermos ensinar o computador a ser criativo vai-nos obrigar a perceber melhor a nossa própria criatividade. E provavelmente a criatividade acabará por ser um misto de computador-homem. Aliás há já muitos artistas que usam o computador. Quer artistas plásticos quer músicos, que utilizam o computador para aumentar a sua criatividade. O computador é um instrumento de criatividade, e eu nem sei se nós queremos um computador simplesmente criativo. A criatividade do computador tem que fazer sentido para nós, e portanto, penso eu que será um processo conjunto.

AP - E relativamente aos sentimentos. É possível a um computador reconhecer e exprimir sentimentos?

LMP - Por enquanto é possível. Tudo é possível enquanto não for demonstrado impossível, o que é quase impossível de fazer...

AP - Ou seja, pode-se dizer que não há limites. Acaba por não os haver...

LMP - É muito difícil provar que algo é impossível, não é verdade? E portanto se nós acreditamos na nossa inteligência, se acreditamos no nosso conhecimento, na capacidade de percebermos o mundo cada vez melhor, e portanto também de dominarmos a realidade, modificando e construindo artefactos, tudo é possível. Estarmos a dizer que algo não é possível é sempre referente ao estado de ignorância que nós temos...

AP - Mas presentemente, no estado da ciência actual e a investigação actual, é possível haver uma relação afectiva com o computador?

LMP - É. Hoje em dia há bastante investigação sobre a inteligência emocional, a qual também está aí na moda por causa do livro Emotional Intelligence e dos trabalhos do casal Damásio. Mas o que é certo é que, mesmo antes disso, já se fazia investigação no uso das emoções no computador. Até porque o computador precisa de dialogar com o homem. Precisa de entender por exemplo as expressões faciais do homem, fazer expressões faciais que o homem entenda. Existem robôs, por exemplo o Cog, do laboratório de IA do MIT, que tem olhos, com duas câmaras de televisão como pupilas, e por cima deles sobrancelhas móveis, além de umas orelhas móveis também. Quando ele põe as sobrancelhas assim, de um certo modo, mostra que não está a perceber o que lhe estamos a dizer, e ele próprio reage às minhas sobrancelhas ou ao meu sorriso, pois também exibe um sorriso articulável. Quer dizer, para o computador a emoção é uma forma de comunicação também, que usa para se relacionar. E portanto, para comunicar com o computador também o podemos fazer através das nossas expressões faciais. As emoções existem porque evolucionariamente se verificaram necessárias à comunicação, e o computador precisará cada vez mais delas.

AP - Mesmo para ele sobreviver no meio, não é?

LMP - Por exemplo, um computador pode estar num estado emocional optimista ou pessimista. Um computador que esteja num estado pessimista ou céptico, quando está a resolver um problema está sempre com dúvidas. Não sabe se realmente tem a boa informação, vai constantemente confirmar, vai fazer mais umas contas, e pronto, pode estar tão pessimista que não chega a fazer nada porque está sempre em grande em dúvida, e pode-se dizer que entra em depressão. É o que chamamos a pesquisa em largura.

AP - Mas isso também é programado, não é?

LMP - É. O computador optimista, crédulo, assim que encontra uma pista para um resultado acha que aquilo está no caminho da solução e vai logo para a frente, às vezes com maus resultados. É o que chamamos a pesquisa em profundidade.

AP - Quando conhecemos uma pessoa poderemos criar empatia com ela, poderemos simpatizar logo à primeira, e há pessoas que à partida, até sem ter trocado uma palavra, olhamos para elas e não simpatizamos. É possível programar a máquina, ou a máquina ter esse tipo de relacionamento, aleatoriamente, relacionar-se com uma pessoa e não gostar e relacionar-se com outra e mostrar alguma afectividade...

LMP - Penso que as máquinas têm que gostar das pessoas, não é? Isso será uma das leis da robótica, a 1ª lei da robótica: "Todo o robô gostará de qualquer pessoa".

AP - A esse nível já existem limites, pode dizer-se que aí existe um limite ético à inteligência artificial.

LMP - Repare, muitas vezes nós gostarmos ou não de uma pessoa tem a ver com fero-hormonas, os sinaisinhos químicos invisíveis, os cheiros que a gente nem dá por isso. Tem a ver com a constituição facial das pessoas ou a sua atitude, que nos faz lembrar às vezes o nosso pai ou a nossa mãe. Está provado estatisticamente que as pessoas se casam com pessoas semelhantes aos pais, fisionomicamente semelhantes, em média. Isso está mais que provado, com centenas de milhares de casos. Também há a questão das raças: a pessoa empatiza mais ou se calhar percebe melhor as emoções de alguém da sua raça do que de outra raça porque há pequenas diferenças que nós não conseguimos interpretar. Aliás é vulgar dizer-se que para nós os orientais parecem-nos todos um pouco iguais e vice versa, porque não temos o treino de entender aquele tipo de fisionomia. Portanto nós vamos ter que ter computadores que saibam adaptar-se, o computador vai ter de perceber: "Ah, não, este sujeito é provavelmente japonês e então tenho que fazer assim... e nunca digo que não, e tal e coisa... ". Se imaginarmos um robô, digamos ao balcão de um aeroporto a fazer o "check-in", ele vai ter que saber adaptar-se culturalmente, isso é inevitável.

AP - Esse tipo de cenário, estava a pensar em mercado de trabalho, retira ao homem a necessidade propriamente dita de trabalhar. O homem passa a ter um estatuto completamente diferente. É complicado também porque o robô começa a substituir o homem. Julgo que o homem está a evoluir para uma mentalidade em que isso não o preocupa minimamente porque poderá então fazer coisas que sempre quis fazer, e o indivíduo em sociedade ganha uma autonomia maior, mas poderá criar problemas não é?

LMP - Claro. A tendência é para que os robôs possam fazer aquilo que nós não gostamos de fazer.

AP - Sim, mas por exemplo, ao dono de uma empresa pode-lhe ficar mais barato meter não sei quantas máquinas a fazer o serviço que os humanos, os quais mesmo que não gostassem necessitavam de fazer porque precisam ter um salário. Isso poderá ser perigoso.

LMP - Eu não sei se vai ser mais barato comprar um robô sofisticado ou fazer antes um implante num ser humano que o transforme num robô. Eventualmente esse implante, ligado a um computador central, programa esse ser humano. Isso é um cenário possível. E nós sabemos ao que a ganância do lucro pode levar, e que o capitalismo selvagem levará certamente a isto. Porque se já temos seres humanos com uns corpos óptimos, articulados, que se sabem mover coordenadamente, com olhos excelentes, não sei para quê fazer um robô...

AP - Isso é extremamente perigoso, não é? Dá ideia que é um pouco assustador. Será que isso é positivo?

LMP - Não será certamente positivo para esses seres humanos, mas será positivo para os outros que vão beneficiar disso, não é? Mas tal não é um problema novo. Quer dizer, muito do mundo funciona à custa de explorar pessoas. Pergunto se a grande maioria das pessoas actualmente não são robôs, com os seus algoritmos diários, programados para se levantarem a tal hora, terem que ir para o emprego fazer actividades repetitivas, levados a comprar coisas que não lhes interessam para nada, programados pelo marketing para ter estes e aqueles pensamentos e estes e aqueles desejos. Pergunto se não estamos já todos robôtizados?

AP - O grande problema é que o homem, mesmo que não dê por isso, mesmo que seja robôtizado, tem a consciência da consciência, mesmo que tenha um chipzinho implantado, a não ser que ampute essa consciência da consciência. Mesmo que tenha lá o chipzinho a funcionar ele vai ter sempre uma consciência daquele: "porque é que eu estou sempre a vir para aqui, porque é que, vai ter sempre esse tipo de trabalho, etc." É difícil dar uma consciência da consciência ao computador.

LMP - Tecnicamente não é complicado, porque basta que um programa possa processar outro programa, e nós fazemos isso. A capacidade de se ver ao espelho é possível.

AP - Isso pode colocar também o computador em pânico, ele começa a interrogar-se, pode levá-lo à inacção. Por exemplo, há seres humanos em que leva...

LMP - Exactamente.

AP - Às tantas o computador começa a equacionar, e ele tem muitos mais dados. Por isso é que eu digo que é um bocado difícil um computador ter a consciência da consciência como o ser humano, porque tem à sua disposição uma informação tão vasta...

LMP - Mas repare, uma coisa é o mecanismo da consciência, ou seja, o poder reflectir, o poder especular -- e especular vem de espelho, tem a mesma raiz que espelho -- mas outra coisa é ter informação. Não vale a pena especular no vazio, não é verdade? E a sensação que tenho é que as pessoas hoje em dia pura e simplesmente não percebem como é que a sociedade funciona. Não têm a noção dos mecanismos globais económicos, não têm a noção dos métodos de marketing e de campanhas para as induzir a ter este tipo de estilo de vida ou aquele, ou seguir aquela moda ou aquela outra, não têm o conhecimento acerca dos determinantes biológicos que os levam a comportarem-se desta ou daquela maneira, não percebem ou sabem muito pouco de sociologia. Hoje em dia há uma quantidade de conhecimentos acerca da civilização que a maior parte das pessoas não tem, porque os seus cérebros estão ocupados com conhecimentos irrelevantes sobre o futebol, sobre as modas, sobre as telenovelas... Pergunto-me como é que as pessoas podem ter consciência quando não têm informação de base e não têm espaço e tempo mental, mesmo que tenham a informação de base. Aliás ela está acessível, está nas bibliotecas, está em todo o lado, quem quiser tem-na. Têm é uma falsa consciência. É-lhes prescrito, olhe, a consciência que você deve ter é esta outra. E são conscientes, mas com essa.

AP - Quais os benefícios, as possíveis vantagens de dar emoções a uma máquina, ou fazer com que a máquina se relacione com o ser humano de maneira emocional?

LMP - Ora bem, hoje em dia as emoções estão muito na moda. Mas as emoções são antigas e correspondem ao cérebro, ao paleocérebro, essencialmente ao cérebro dos répteis, em que a emoção é um estado global do organismo provocado sobretudo por agentes químicos, por hormonas que se espalham no cérebro, e a partir do deste espalham-se no corpo. Um réptil com uma inteligência limitada tem que reagir de maneiras muito esquemáticas, do tipo, "se há perigo fujo", "se há perigo luto", ou "isto é uma oportunidade sexual boa, avanço", e coisas assim. Portanto são o tipo de reacções com uma análise pouco fina da própria situação e das alternativas e possibilidades de reacção diferentes, e com pouca, também, capacidade de antever o que vai acontecer no futuro, que é uma característica maior de alguns mamíferos, e em particular do Homem. Nós prevemos o futuro e adaptamo-nos previamente, ou então mudamos o futuro para ser aquilo que queremos. Isso exige as faculdades intelectuais superiores. Mas as pessoas têm a noção de que as emoções são algo de puro, que brota de uma fonte interior pristina, completamente pura e incorrompida, e portanto só têm que seguir as emoções para encontrar a solução. Como elas vêm lá do fundo, não é, como uma fonte que jorra do fundo da montanha, de certeza que são boas e não foram ainda corrompidas. Embora, na verdade, as emoções sejam altamente contraditórias. A pessoa tem uma noção de que quer isto mas também quer fazer o contrário, tem não sei quantos desejos contraditórios. E eu pergunto como resolve as suas emoções. Resolve-as, depois, com a tal consciência que pensa sobre elas, com a tal consciência reflexiva. E é portanto por isso que, evolucionariamente, aparece o córtex dos mamíferos e aparece o neocórtex nos seres humanos, capazes de melhor controlarem as emoções. Aliás, quem faz ciência, quem teve uma formação científica, uma das primeiras coisas que aprende é que as emoções têm que estar separadas digamos, do estudo científico. Têm que estar separadas porque eu não posso dizer assim, este teorema é verdadeiro porque eu gosto muito dele, porque achava bom, porque far-me-ia sentir muito quentinho que ele fosse verdadeiro e seria óptimo. Pelo contrário, quando o cientista sente isso tem que redobrar a crítica. O homem de ciência tem que ser sempre muito crítico, porque de facto acontece isso, a pessoa deseja que o resultado seja verdadeiro e daí a nada está a fazer um passo errado na demonstração do teorema. Isso é mesmo verdade. O desejo que aquilo seja verdadeiro, a emoção, o desejo de ser verdade o que descobriu, o que vai comunicar aos outros, tudo isso, são estados emocionais, que têm que estar bem separados da actividade científica. O que não quer dizer que as emoções não tenham também um valor cognitivo importante...

AP - Qualquer pessoa acho já sentiu um momento em que, mesmo que esteja a resolver uma equação ou a escrever filosofia ou literatura, a pessoa está em euforia e em ebulição com aquilo tudo, não é?

LMP - Exacto. Em certas ocasiões a pessoa tem que se, digamos, auto-hipnotizar. Acreditar que está a fazer a coisa correcta, que está a atingir desígnios importantes, que dão uma sensação completa de realização e de bem-estar. E os cientistas sentem isso também. Os cientistas de certa maneira são um pouco religiosos, porque têm aquele sentimento de perceber as complexidades do mundo, a própria beleza dessa complexidade. Mas que também requer um caminho intelectual difícil, porque hoje em dia vivemos num mundo sem sentido intrínseco. Hoje em dia é já vulgar não se acreditar em Deus, que o mundo tem um sentido qualquer, que a existência tem sentido, que o universo vai para algum lado. Estamos aqui perdidos, demos à costa aqui neste cosmos, estamos naufragados aqui nesta realidade. Mas para mim isso é extremamente belo, que não haja sentido nenhum, porque então eu posso fabricar o sentido que entender. Eu não gostaria de ter um universo em que o sentido está definido à partida, ter que seguir esse sentido. No fundo é isso que os filósofos existencialistas nos vieram dizer, que temos que fabricar o nosso próprio sentido. E hoje em dia, a psicologia evolucionária acrescenta que há um sentido fabricado pela espécie e pelas necessidades evolutivas que levaram ao modo de funcionar do cérebro humano. Mas é um sentido de base, não é um sentido prédestinado. Isto leva-nos ao tópico da religião artificial. Porque, a dada altura, não bastam as emoções artificiais. Vamos ter que dar aos computadores, aos robôs, uma religião. Vamos ter que lhes dar grandes desígnios, um dos quais há bocado dissemos: "Serás sempre simpático para todo o ser humano". Vamos ter que fazer uma lista de mandamentos, afinal de contas.

AP - Mas qual a necessidade desses desígnios para o computador?

LMP - É uma ética. No fundo temos que lhes dar regras de comportamento, uma ética.

AP - Para ele não sair do controlo, para ele estar determinado culturalmente, para as suas acções também não fugirem muito da norma, é isso?

LMP - Não queremos controlar os computadores, até porque provavelmente vai ser impossível. Isso é apenas um receio um pouco paranóide perante o desconhecido: Quer dizer, nós queremos controlar o desconhecido, mas é impossível controlar o desconhecido.

AP - E nessa medida é que se diz que é uma ameaça, que poderá ser um perigo porque não é controlável?

LMP - Tudo é um perigo. Nós estamos aqui numa sociedade complexa, num mundo globalizado, num mundo que funciona de maneiras que nós ainda desconhecemos. Os economistas passam a vida a dizer-nos que conhecem, mas depois verifica-se que afinal não conheciam. Estamos rodeados de desconhecido por todos os lados e não devemos ter medo. Os seres vivos desde que começaram a sua caminhada evolutiva sempre estiveram rodeados de desconhecido por todos os lados e já chegaram muito longe. Portanto nós devemos estar relativamente optimistas, se há uma época e se há um sentido para a vida é o sentido dado por essa evolução, e que hoje em dia é estudado pela chamada psicologia evolucionária, pela sociobiologia. Digamos que o nosso sentido é o sentido acumulado da nossa evolução. Os computadores, na medida em que são uma criação nossa, é que no fundo nos estão a permitir lidar com essa própria evolução e a complexidade das coisas. Se desligassem todos os computadores o mundo parava e torna-se uma coisa completamente diferente. Penso que as pessoas têm a noção disso, de que eles evoluíram connosco e connosco continuarão a evoluir...

Luís Moniz Pereira
Universidade Nova de Lisboa

LMP@di.fct.unl.pt

http://www.geocities.com/revistaintelecto/iae.html, noviembre 15 de 2007

Nota

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Medellín, Antioquia, Colombia
Magister en Filosofía y Politóloga de la Universidad Pontificia Bolivariana. Diplomada en Seguridad y Defensa Nacional convenio entre la Universidad Pontificia Bolivariana y la Escuela Superior de Guerra. Docente Investigadora del Instituto de Humanismo Cristiano de la Universidad Pontificia Bolivariana. Directora del Grupo de Investigación Diké (Doctrina Social de la Iglesia). Miembro del Grupo de Investigación en Ética y Bioética (GIEB). Miembro del Observatorio de Ética, Política y Sociedad de la Universidad Pontificia Bolivariana. Miembro del Centro colombiano de Bioética (CECOLBE). Miembro de Redintercol. Ha sido asesora de campañas políticas, realizadora de programas radiales, así como autora de diversos artículos académicos y de opinión en las áreas de las Ciencias Políticas, la Bioética y el Bioderecho.

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